sábado, 27 de agosto de 2016

Bicho da goiaba, goiaba é?
(as moscas-das-frutas)
Por Lucia Maria Paleari

Clube de Ciências
Diário de Bordo



Bicho da goiaba, goiaba é?
(as moscas-das-frutas)

Lucia Maria Paleari
lpaleari@ibb.unesp.br
"Bicho de goiaba, goiaba é", diz o ditado popular. Você acredita nesse ditado? Existem pessoas que acreditam. Afinal, dizem elas, desde que uma mosca-da-fruta coloca seus ovos na goiaba, as larvas que nascem desses ovos ficam abrigadas dentro do fruto, alimentando-se apenas dele (Figura 1). Por esse motivo, para essas pessoas, o ditado popular se cumpre, e bicho de goiaba, goiaba é.


Figura 1 - Goiaba e mosca-da-fruta Anastrepha sp.: (A) Fruto atacado; (B) Larva em meio à polpa; (C) Imagem ampliada da larva.

No entanto, biologicamente falando, o ditado popular "Bicho de goiaba, goiaba é", não retrata a realidade. Vejamos o porquê.
É fato que moscas-das-frutas que atacam goiaba, perfuram a casca dessa fruta para depositar os seus ovos. É fato também, que desses ovos eclodem larvas conhecidas popularmente por “bigato”, um bichinho roliço e esbranquiçado (Figura 1), que consumirá a polpa da goiaba durante os estádios (etapas) de desenvolvimento pelos quais irá passar dentro da fruta. No entanto, isso não significa que o corpo dessas larvas seja composto de polpa de goiaba. De maneira alguma. A polpa que foi ingerida sofreu um processo denominado de digestão e foi transformada. Os produtos dessa transformação são utilizados pelas larvas, para construir e manter em funcionamento os seus corpos.

O furo feito por uma mosca adulta, para depositar os ovos na goiaba, favorece a entrada de microrganismos que prejudicam a fruta, fazendo com que ela apodreça e caia. Ao cair, as larvas que se originaram dos ovos, e nesse momento já estão desenvolvidas, deixarão o fruto e migrarão para o interior do solo, onde passarão pela fase de pré-pupa, antes de atingir o estágio de pupa (Figura 2).
Figura 2 – Mosca-da-fruta Anastrepha sp.: (A) Pré-pupa e (B) pupa.


Depois de diversos dias, ainda no solo, o envoltório da pupa será rompido e dele emergirá uma mosca adulta, como a que pode ser vista na figura 3, abaixo.


Figura 3: Mosca-da-fruta, Anastrepha sp., que emergiu da pupa apresentada na figura 2. (OBS. Apesar de aparecerem na imagem apenas dois pares de pernas, há outro par sob o corpo da mosca que, como todo inseto, possui três pares de pernas).


Moscas-das-frutas no Brasil

O gênero Anastrepha, composto por 94 espécies conhecidas de moscas-das-frutas, é originário das Américas do Sul e Central. Juntas com a espécie Ceratitis capitata, originária do Mediterrâneo, preocupam muito aos fruticultores, por causarem grandes prejuízos econômicos. Essas espécies de dípteros, assim como nós humanos, encontram nas polpas suculentas de frutos como a goiaba, gabiroba, araçá, jabuticaba, uvaia, cajá, uva, carambola, laranja, abiu e tantas outras, matéria e energia de que necessitam para viver.

Na figura 4, logo a seguir, pode-se ver um esquema do ciclo de vida das moscas-das-frutas e de alguns outros insetos, como besouros, que passam por metamorfose completa. Mais detalhes sobre ciclo de vida de insetos podem ser vistos aqui.


Figura 4 - Esquema representando o ciclo de vida das moscas-das-frutas. Em geral, a fruta atacada apodrece e cai no solo, para onde as larvas migram e se transformam em pupas, que aí se mantêm até que de cada uma delas emerja uma mosca adulta. Machos e fêmeas sairão em voo e poderão acasalar ao se encontrarem.

O ciclo total de vida de moscas do gênero Anastrepha varia em torno de 25 a 40 dias, a depender da espécie, da fruta atacada e das condições de temperatura do lugar. Em geral, elas se desenvolvem melhor em locais que apresentam temperaturas em torno de 25°C. Se esse valor cair abaixo de 15°C ou for acima de 35°C, a mortalidade será grande. Como no Brasil as temperaturas oscilam dentro do intervalo mais favorável às moscas-das-frutas, elas têm condições de viver bem no país a maior parte do ano.

No Estado de São Paulo já foram registradas 35 espécies de Anastrepha, algumas das quais denominadas de monófagas, por se alimentarem de frutos de uma única espécie de frutífera. Outras, por se restringirem a frutíferas de um único gênero, foram denominadas de estenófagas (esteno = estreito). As oligófagas (oligo = pouco) são espécies que podem consumir frutos de alguns gêneros de plantas, mas pertencentes a uma mesma família de frutíferas. Há ainda as polífagas (poli = muitos), que podem consumir frutos dos mais variados, pertencentes a espécies de frutíferas de diferentes famílias.

Uma Anastrepha pode depositar em torno de 400 ovos durante sua vida adulta. Mesmo sabendo que parte desses ovos podem ser inviáveis, que larvas e pupas podem adoecer e morrer, ou serem mortas devido ao ataque de seus inimigos naturais, o potencial de ataque e destruição de frutas por moscas desse gênero é grande. Além disso, no Brasil há inúmeras frutíferas produzindo frutos em diferentes épocas do ano, o que favorece a manutenção das populações dessas moscas.


Controle biológico
das moscas-das-frutas

Apesar de se tratar de um inseto pequeno e bonito, com traços vistosos nas asas, as moscas-das-frutas são temidas pelos fruticultores. E não é para menos, uma vez que elas podem ocasionar grandes perdas à produção. No entanto, não se resolve um problema produzindo outro ainda maior, como acontece quando se utiliza, principalmente de maneira abusiva, venenos químicos, também conhecidos por agrotóxicos. Esses venenos que matam as moscas-das-frutas, também podem nos matar, ou nos fazer adoecer gravemente, quando ingeridos com as frutas que consumimos. É preciso investir constante e intensivamente em estudos para desenvolvimento de práticas de controle eficientes, que deixem de lado o uso de venenos químicos em pomares.

Além do ensacamento das frutas com saquinhos de papel, que impedem as moscas de ovipor, há também a possibilidade de fazer uso de seus inimigos naturais. Tal prática, que recebeu o nome de controle biológico, no Brasil e em toda a América do Sul ainda é insipiente. Trata-se de uma prática que precisa favorecer os inimigos naturais, oferecendo-lhes alimento e abrigo, para que eles se estabeleçam nos pomares e controlem o tamanho das populações de moscas-das-frutas. Para isso é preciso cuidar de todo o ambiente onde estão as frutíferas, mantendo-o mais próximo das condições em que normalmente essas plantas existiam antes de serem plantadas em larga escala, como monoculturas, em terrenos desnudados e adubados exclusivamente com adubos químicos, adubos esses produzidos em fábricas. É preciso também, manter nos pomares outras espécies de plantas, num plantio consorciado, ou seja, que misture diferentes espécies de vegetais.  Nesse plantio consorciado podem ser utilizadas inclusive plantas ruderais, comumente referidas por mato ou planta daninha. Além das plantas ruderais poderem servir de abrigo aos inimigos naturais, elas produzem pólen e néctar, que normalmente servem de alimentos a eles. Para saber mais sobre a importância dessas plantas, acesse: Por que mato com tanto desprezo?

Algumas espécies de vespinhas, principalmente das famílias  Braconidae e Figitidae, são conhecidas como inimigos naturais de moscas-das-frutas. Por serem também insetos, esses inimigos naturais recebem o nome de parasitóides. Braconídeos podem colocar seus ovos nas larvas das moscas, depois de localizarem-nas no interior dos frutos, mas os parasitoides filhos só emergirão como adultos, quando as larvas utilizadas para parasitismo estiverem na fase de pupa. Devido a essa característica denominou-se, esse tipo de parasitismo, de parasitismo larvo-pupal.
Substâncias liberadas pelos frutos maduros atacados pelas moscas-das-frutas podem atrair seus respectivos parasitoides, que, dessa forma, terão certa facilidade para deixar a sua prole, os seus descendentes.

No vídeo abaixo, a vespinha pertencente à espécie Diacasmimorpha longicaudata, detecta e parasita uma larva de mosca-da-fruta no interior de uma maçã.





Embora sejam conhecidas diversas espécies de vespinhas parasitoides de moscas-das-frutas, a espécie Diacasmimorpha longicaudata tem sido muito estudada, por ser relativamente fácil de criar em laboratório, para posterior liberação em pomares. Se além disso, for mantido alto grau de diversidade biológica nas plantações, os indivíduos dessa espécie terão maiores chances de se estabelecer nos pomares, sem a necessidade de liberações repetidas, de adultos criados em laboratório.

Para você que cultiva frutíferas e quer saborear frutos gostosos, bonitos e saudáveis, livres de agrotóxicos, veja esse tipo de experiência adotado hoje por pessoas que buscam alimentação de boa qualidade: