domingo, 13 de abril de 2014

Onde há fumaça, há fogo! Será verdade?
Por Lucia Maria Paleari

Clube de Ciências
Diário de Bordo
Visita ao Centro de Isótopos Estáveis de Botucatu
Nitrogênio líquido – Primeira parte



Onde há fumaça, há fogo! Será verdade?
  
Por Lucia Maria Paleari
lpaleari@ibb.unesp.br


Existe um antigo ditado popular que afirma: “Onde há fumaça, há fogo!” Mas, será mesmo que isso é sempre verdade?

Dê uma boa olhada em alguns dos participantes do Clube de Ciências, alunos da EMEF “Dr. João Maria”, de Botucatu, na imagem abaixo. Imersos na fumaça, será que estariam andando sobre uma fogueira? Dizem, embora eu nunca tenha visto, que no dia de São João, à meia-noite, as pessoas costumam andar descalças sobre brasas de fogueiras sem queimarem os pés.



Bem, como você deve ter percebido, o pessoal do Clube de Ciências não estava andando sobre uma fogueira. Se observar melhor a imagem verá que nem noite era. Além disso, uma fogueira em pleno estacionamento de carros no campus da Unesp de Botucatu? Difícil acreditar que essa fumaça seja proveniente de fogo, não é mesmo? Talvez fosse um nevoeiro... Afinal, Botucatu está localizada na Cuesta, e o campus da universidade fica a uma altitude de, aproximadamente, 900m. Nevoeiro em Botucatu seria, sim, uma possibilidade, mas posso lhe assegurar que na época em que a imagem foi captada já não havia condições climáticas propícias para que tal fenômeno acontecesse.

Na verdade, a imagem resultou de uma brincadeira feita por um dos técnicos do Centro de Isótopos Estáveis, do Instituto de Biociências, da Unesp de Botucatu, em uma visita que fizemos àquele local. Essa visita, muito especial para todos nós, serviu de grande incentivo para uma série de atividades interessantíssimas que realizamos no nosso Clube de Ciências, e que serão contadas um pouco neste post e depois, paulatinamente, em outras postagens.

As histórias envolvendo o nitrogênio tiveram início quando um aluno do curso de Física Médica, empolgado com a visita que fizera ao Centro Isótopos Estáveis, sugeriu que usássemos nitrogênio líquido produzido naquele local, para incentivar e também empolgar os adolescentes do Clube.  

Achei a ideia muito boa, pois poderíamos incentivá-los a observar, pensar e encontrar explicações para vários tipos de fenômenos, tendo o nitrogênio líquido como ponto de partida. Além dos conhecimentos de física, poderíamos explorar a relação do nitrogênio com os seres vivos, a maneira como ele entra nas cadeias alimentares e algumas importantes questões ambientais, resultantes do seu uso como adubo na agricultura. Decidimos, então, procurar viabilizar essa atividade. 

Contudo, para que explicações possíveis para fenômenos que seriam observados, não fossem apenas “chutes no escuro”, conceitos como os de átomo e molécula deveriam estar bem sedimentados pelos clubistas. E para que esses conceitos fossem desenvolvidos, decidi retomar uma metodologia elaborada por mim em meados da década de 1980, quando era professora da Escola Comunitária de Campinas, cuja parte inicial pode ser conhecida aqui. Por meio dessa proposta foi possível desenvolver com os alunos o importante conceito de modelo científico e, com isso, levá-los a entrar em contato com os caminhos iniciais da metodologia científica.

O próximo passo foi conversar com o Dr. Carlos Ducatti, supervisor do Centro de Isótopos Estáveis, sobre os nossos planos para o Clube de Ciências. Ele, um grande incentivador de propostas educativas que estimulem a imaginação e o gosto pela ciência, a partir de experimentos e desafios que possibilitem o desenvolvimento da criatividade, da capacidade de compreensão e solução de problemas, pronta e gentilmente, disse que nos cederia um galão de nitrogênio líquido para os primeiros trabalhos, o que nos deixou muito contentes.

No dia previsto fomos buscar o nitrogênio líquido no Centro de Isótopos Estáveis, para realizar as experiências e de lá saímos com várias recomendações de segurança. Dentre elas, que aquela substância jamais fosse tocada e que os recipientes fossem transportados com cuidado para evitar choques.

Já na sala do Clube de Ciências, sempre seguindo todas as orientações que havíamos recebido, passamos parte do nitrogênio líquido do galão, para uma garrafa térmica de boca larga, que foi colocada sobre a bancada. Essa garrafa, e o galão usado no transporte, possuem tampa dotada de canaleta para permitir saída constante de gás e, assim, evitar explosões.

A passagem do nitrogênio para a garrafa térmica foi um espetáculo que causou euforia em todos que estavam na sala do Clube de Ciências: muita “fumaça”, um efeito visual digno das melhores produções cinematográficas.

Lembra-se da primeira imagem apresentada aqui, captada no estacionamento da Unesp? Pois então...  Qualquer semelhança daquela imagem com o espetáculo que  presenciamos diante do galão e da garrafa térmica, não era mera coincidência. A “fumaça” no chão do estacionamento nada mais era do que nitrogênio, como também era nitrogênio a “fumaça” que saia pela boca da garrafa térmica.

Em seguida, a extremidade de um fio metálico, acoplado a um termômetro digital, foi introduzida no nitrogênio líquido da garrafa térmica para verificar a temperatura.

Surpresa geral! A temperatura registrada era nada mais, nada menos do que: -196 graus Celsius (°C). Prestou atenção a esse valor? São 196°C, mas negativos!!! Nem nos invernos mais rigorosos da Rússia, Europa, Canadá ou nos Polos, por exemplo, as temperaturas chegam a um valor tão baixo.

E assim começaram os desafios: Por que o nitrogênio líquido estava tão frio, enquanto, na nossa sala, o termômetro marcava 26°C (positivos), portanto, um ambiente bem mais quente do que o do interior da garrafa? Será que o nitrogênio líquido saíra de alguma geladeira? E por que um líquido tão frio virava gás daquela maneira, saindo da garrafa térmica?

A primeira tentativa de explicação, para a formação daquela “fumaça” logo surgiu: “é porque fora da garrafa está mais quente”. Sim, fora da garrafa térmica estava mais quente, isso era um fato e poderia estar relacionado ao fenômeno, mas, na verdade, não explicava o que acontecia com o nitrogênio líquido, para que ele se transformasse em gás.

Fomos em frente com as nossas experimentações e observações.

Na sequência, com a garrafa térmica ainda sobre a bancada, sem tampa, e sempre com gás saindo para a atmosfera, foram realizadas experimentações que alguns chamariam de “mágicas”. Na primeira, um balão de ar (bexiga), um pouco inflado, foi colocado na boca da garrafa térmica. Em segundos, esse balão ficou tão murcho, que podia ser introduzido no interior da garrafa, como mostram as imagens da figura a seguir.


Investigação com nitrogênio líquido: 
No alto, o balão de gás (bexiga) inflado com ar; 
no meio, a bexiga colocada na boca da garrafa térmica;
abaixo, a bexiga  murcha, que foi erguida para observação do volume muito reduzido.

Como foi possível aquilo acontecer? Como explicar aquela mudança? Não, o que aconteceu bem diante dos nossos olhos não foi mágica! Como também não foi mágica ter aparecido gotinhas de líquido na parte inferior do tubo de ensaio, introduzida dentro da garrafa térmica. 


Tubo de vidro (tubo de ensaio) com a extremidade inferior introduzida
 na garrafa térmica de boca larga, contendo nitrogênio líquido

De onde teria vindo aquele líquido que, por ser transparente, foi de pronto associado à água? Ora, aquele líquido só poderia ter surgido de algo que já estivesse dentro do tubo. E o que poderia estar dentro do tubo, que não conseguíamos enxergar? A resposta foi imediata: O ar! O mesmo ar que havia dentro da bexiga, que murchou quando colocada próxima ao nitrogênio líquido. Todos já haviam estudado o ar e sabiam até mesmo os tipos de gases que existem na atmosfera.

E como esses fenômenos todos, que à primeira vista parecem mesmo mágicas, teriam acontecido?  Como matar essa charada? Primeiro foi pensado: Se a bexiga havia murchado, quando colocada em lugar muito frio, no interior da garrafa térmica, sinal de que o ar que ela continha havia se contraído, encolhido. Claro, a explicação era plausível! E ficou ainda melhor, quando alguém lembrou o que foi aprendido na nossa primeira investigação, na qual elaboramos os conceitos de modelo atômico e modelo molecular. O ar, composto por diversos tipos de gases, é matéria. Portanto, se é matéria, é constituída de moléculas, que, ao entrar em contato com um ambiente mais frio, agitam-se menos e se aproximam umas das outras, ocupando um espaço menor.

Mas, e o líquido que apareceu no tubo de vidro? Como poderíamos explicar esse fenômeno, senão seguindo o mesmo raciocínio anterior?

Repetimos, então, a experiência com o balão de ar, para observarmos com mais cuidado o seu interior, após ele ser colocado na boca da garrafa térmica contendo nitrogênio líquido. E não deu outra: havia ali gotas de líquido. Parecia possível concluir que o resfriamento de um gás pode levá-lo a mudar de estado físico, transformando-o em líquido. E é isso mesmo que acontece. Foi curioso, ninguém associar esse fenômeno observado no interior do tubo de ensaio e do balão de ar, com um fato corriqueiro e muito parecido, que se explica da mesma maneira: as gotas de água que se formam na superfície de um copo gelado exposto ao ar, principalmente em dia chuvoso.

Mas, e a “fumaça” que saia da garrafa térmica que continha nitrogênio líquido, como se formava?

Para responder a essa outra pergunta, bastou raciocinarmos de maneira inversa àquela que vínhamos fazendo até o momento. Vejamos: se de um local quente para um bem mais frio as moléculas se movimentam menos e se aproximam, de um ambiente frio para outro mais quente, é provável que elas se movimentem mais, se separem, e se separem o bastante para que aquilo que está no estado líquido passe para o estado gasoso. Ao que tudo indicava, tínhamos resolvido mais essa charada.

Nas condições normais da nossa atmosfera, o nitrogênio existe na forma de gás. Para se tornar líquido, ele precisa ser submetido a condições especiais de muito frio e de alta pressão. Como a nossa garrafa térmica estava destampada, as moléculas foram escapulindo, dando aquele aspecto de fumaça. 

Nossas experiências com o nitrogênio líquido continuaram. E foi a vez de uma folha de chuchu, que colhemos de um pé que avançou do quintal do vizinho para o quintal da escola. Com muito cuidado, ela foi introduzida na garrafa térmica contendo o nitrogênio líquido. Ao retirá-la de lá, ficamos boquiabertos: a folha de chuchu, antes verdinha, ficou rígida, escura e pode ser transformada em pedacinhos, apenas com uma apertadela.

Após constatarmos o que havia ocorrido com a folha de chuchu, mesmo sem saber explicar o que havia acontecido com ela para que esfarelasse daquela maneira, entendemos, na prática, as recomendações cuidadosas feitas pelo pessoal do Centro de Isótopos Estáveis, para que não tocássemos o nitrogênio líquido. Era, de fato, muito perigoso. Algo semelhante ao que aconteceu à folha de chuchu poderia acontecer conosco. E, naquele momento, novas perguntas foram inevitáveis: Por quê? Como, em segundos, a folha de chuchu passara de uma folha verdinha e maleável, a uma folha escura e rígida? Como ela pode esfacelar, quebrar toda e com tão pouca força?

Para chegar a esse entendimento, outras investigações foram realizadas. Sobre elas falaremos nas postagens seguintes. Aguardem.


Sugestão:
Se você quiser saber mais sobre outras atividades do Clube de Ciências, acesse os links: