Clube de Ciências
Diário de Bordo
Princípios da Digestão
Parte I - Amido
Parte I - Amido
Lucia Maria Paleari
lpaleari@ibb.unesp.br
O que é digestão?
Com o objetivo de desenvolver esse importante conceito e de
responder à pergunta feita acima, os alunos do Clube de Ciências da EMEF "Dr. João Maria de Araújo Jr.", de Botucatu, realizaram investigações com dois
tipos de alimentos. Um deles o amido, um carboidrato encontrado em vegetais, cuja molécula é formada
basicamente por carbono, hidrogênio e oxigênio. O outro
alimento investigado foi a albumina, um composto nitrogenado do grupo das
proteínas, encontrada na clara de ovo.
Os clubistas foram divididos em grupos. Um roteiro de
atividades foi preparado e entregue a cada um dos alunos. Nesse roteiro estava
indicado como os materiais, que seriam oferecidos, deveriam ser organizados.
Veja esquema na figura 1.
Só mais tarde aprenderam que essa enzima da saliva é chamada de amilase salivar, ou ptialina, e que ela é capaz de reduzir amido a moléculas menores de outro açúcar, a maltose, formada por duas moléculas de glicose. Essas duas moléculas de glicose, por sua vez, só serão separadas uma da outra, por ação de outra enzima denominada maltase. Mas esses detalhes não se mostraram necessários naquele momento, pois o mais importante era que os clubistas começassem a compreender o processo de transformação de um alimento e elaborassem o conceito de digestão. Esse conceito, no entanto, só foi generalizado por eles após a segunda etapa das investigações realizadas, quando do estudo da proteína da clara de ovo, que veremos no próximo post deste blog.
A estratégia usada para o ensino dos princípios da digestão
do amido, que veremos a seguir neste post, como também a estratégia usada para
o ensino dos princípios da digestão de proteínas, que veremos em outro post,
que também será publicado neste blog, foi desenvolvida e implementada por mim
na década de 1980*, em escolas de Campinas, cidade do interior do Estado de São
Paulo. Essa estratégia foi baseada em atividades práticas existentes nos livros
Biologia** e Biologia na Escola Secundária***, adaptadas aos meus propósitos.
Dentre esses propósitos, dar oportunidade aos adolescentes de desenvolver
conceitos e não de, meramente, memorizar definições. Além disso, por meio de
investigação, eu também pretendia orientá-los a aprimorar a capacidade de
observação e de raciocínio, enquanto aprendiam a organizar e manusear materiais
simples, registrar resultados, inclusive em tabelas e trabalhar em grupo.
Detectando amido
Os clubistas, de acordo com o roteiro recebido, colocaram
nos recipientes “a”, “b” e "a1", uma gota da solução de amido, usando
para isso um conta-gotas. Em seguida, um representante de cada grupo colocou a
sua própria saliva sobre a solução de amido do recipiente “a1”, que foi
reservado para ser testado posteriormente.
O início dos testes foi planejado para que os clubistas
aprendessem o significado de uma reação típica, que, neste caso, seria a do
amido ao iodo. Para isso, a orientação foi a de colocar uma gota da solução de
iodo no recipiente "a", observar e registrar o que acontecia.
Assim que a gota da solução de iodo misturou-se à de amido, apareceu uma cor azulada, como a que se pode observar a seguir.
Assim que a gota da solução de iodo misturou-se à de amido, apareceu uma cor azulada, como a que se pode observar a seguir.
Figura
2 – Teste da reação do amido ao iodo. Recipiente “a” antes e depois da solução de amido ter entrado em contato com a solução de iodo. |
A cor azul observada em "a", após ter entrado em
contato com a solução de iodo, poderá ser mais ou menos intensa. Isso dependerá
principalmente, da concentração da solução de iodo usada. Se a solução for
muito concentrada, cor roxa, parecendo até mesmo preta, pode ser observada.
Em seguida, como forma de atestar que essa cor azulada não aparece quando o amido reage com outras soluções, que não a de
iodo, os clubistas colocaram uma gota de mercúrio cromo sobre a solução de
amido do recipiente “b”. Utilizaram para isso de um conta-gotas específico,
porque, caso usassem o mesmo conta-gotas que fora usado com iodo, a solução de
mercúrio cromo poderia ser contaminada, e isso interferiria no resultado. Tomados
esses cuidados, o que se observou foi que a solução de amido, desse recipiente
"b" no qual foi colocada a gota de mercúrio, não apareceu cor
azul.
Com o teste descrito acima, ficou patente que a cor azul só
aparece quando o amido reage com o iodo, por isso é que dizemos que se trata de
uma reação típica do amido ao iodo.
Quando a cor indicativa da presença de amido é observada,
dizemos que temos um resultado positivo (+), e quando ela não é observada,
dizemos que temos um resultado negativo (-).
Alimentos
que contêm amido
Depois de aprender a identificar a presença de amido, por
meio da sua reação típica ao iodo, o passo seguinte seria verificar em quais
alimentos in natura, selecionados para essa atividade, havia amido.
Nesse momento, os clubistas já sabiam que bastaria pingar
sobre eles uma ou duas gotas da solução de iodo e checar o aparecimento, ou não, da coloração azul. Porém, recomendações foram feitas antes do início dessa parte
do trabalho: que cada alimento fosse testado individualmente, observado com
extrema atenção, e que os resultados fossem anotados. Só então a presença de
amido seria testada no próximo alimento.
Feitas essas recomendações, pedaços de diversos alimentos
foram entregues a cada grupo. Esses alimentos foram, então, colocados, um a um,
separadamente, nos recipientes marcados de “c” a “h”. A seguir, cada um deles
recebeu uma ou duas gotas de solução de iodo.
Tudo o que aconteceu com cada alimento foi registrado cuidadosamente.
A imagem, a seguir,
mostra os alimentos, após entrarem em contato com a solução de iodo.
Com os registros obtidos, os clubistas foram orientados a
construir uma tabela, levando em consideração, o que havíamos combinado
previamente, ou seja: se a cor azul observada fosse suave, ela receberia um
sinal positivo (+), se fosse de tonalidade média, receberia dois sinais
positivos (++), e se fosse azul escuro, indicação de que o alimento devia ter
muito amido, receberia três sinais positivos (+++). Veja tabela 1, a seguir.
Tabela 1 - Resultados das reações de alimentos ao iodo em solução
Tabela 1 - Resultados das reações de alimentos ao iodo em solução
Voltando à base "a1"
Após terem sido feitas as investigações para detectar a
presença de amido nas diversas amostras de alimentos e de registrar os
respectivos resultados, os clubistas voltaram a atenção para o recipiente
"a1". Aquele que continha uma solução de amido e também saliva, e que
fora reservado para teste posterior.
Para surpresa de todos, após colocarem a solução de iodo na
solução do recipiente "a1", a cor azul não apareceu.
Mas, como isso poderia ter acontecido se ali, com toda
certeza, havia sido colocada a solução de amido? Essa era a pergunta que todos
se faziam.
Os clubistas, então, refletiram sobre o acontecido e
rapidamente chegaram à conclusão de que a saliva, única coisa diferente que
fora ali colocada, poderia ter encoberto, ficado por cima da solução de amido,
impedindo o contato dela com a solução de iodo. Será, será que era isso mesmo
que teria acontecido?
Essa suposição, ou hipótese, logo foi descartada, porque,
após misturarem bem o conteúdo do recipiente "a1" fazendo uso de um
palitinho, a cor azul não apareceu.
A dúvida se instalou entre os clubistas. Então, o que teria
acontecido?
Para ajudá-los a pensar e chegar a uma possível explicação,
eu lhes fiz a seguinte pergunta:
-- Se no recipiente
"a1" a reação típica do amido ao iodo foi negativa, qual é a única
resposta possível sobre a existência de amido nesse local?
Eles não titubearam em responder:
-- No recipiente "a1" não tem mais amido.
-- Sim -- disse-lhes eu, já colocando uma nova questão: -- Mas como isso poderia ter acontecido, uma vez que o amido fora colocado ali?
Os clubistas acharam que a saliva deveria ter feito alguma
coisa com o amido.
-- O que seria? -- perguntei.
Eu sabia que apenas com as observações feitas eles não
teriam condições de elaborar uma explicação plausível para o fenômeno. Por
isso, pedi-lhes que revissem o processo de fotossíntese, que já tinham estudado e
registrado nos respectivos cadernos.
-- Fotossíntese, professora? -- eles perguntaram, um tanto
espantados.
-- Exatamente: fotossíntese -- respondi. -- Talvez com isso, vocês possam imaginar o
que tenha acontecido.
Cada grupo, então, fez a revisão pedida. Não demorou muito
para que se lembrassem, dentre outras coisas, que a planta, produtor nas
cadeias alimentares, produz moléculas de glicose. Essas moléculas de glicose,
quando não utilizadas para a obtenção de energia, são unidas pela planta e dão
origem a uma longa cadeia molecular, que é denominada de amido, um açúcar de
reserva.
A partir daí os clubistas colocaram a imaginação para
funcionar e depois de certo tempo alguém fez a seguinte pergunta:
-- Será que a saliva faz o contrário do que a planta faz?
Mesmo sem pensar no sentido exato de uma ação como essa da saliva, o grande salto imaginativo acontecera, e tinha sido muito bom. Vibrei com ele! Um belo insight! Uma bela sacada!
Na discussão que se seguiu, a conclusão foi a de que algo
existente na saliva teria transformado o amido em glicose. E foi pensando dessa
maneira que, os clubistas definiram digestão como sendo a transformação da molécula de amido em moléculas de glicose.
Só então eles ficaram sabendo que certo tipo de substância denominada enzima, tinha sido a responsável por aquilo que eles sugeriram que havia acontecido: a molécula de amido ter sido transformada em moléculas de glicose.
Detetives em ação
E como nunca é demais fazer perguntas, porque são elas que nos movem a pensar, investigar e aprender, perguntei aos clubistas:
-- Será que produtos industrializados como iogurte, requeijão, bala de goma, também conhecida por jujuba, bolacha, queijo e refrigerante, possuem amido?
Claro que já imaginávamos que bolachas tinham amido, afinal, elas são feitas, basicamente, de farinha de trigo, que no teste com solução de iodo havia apresentado reação positiva (ver figura 3c e também a tabela 1 recipiente "c", apresentadas anteriormente). Mas por meio dessa nova investigação, feita logo em seguida, detectamos amido até nas balas de goma (jujubas) e em um alimento, que muito nos surpreendeu: o iogurte. Quem diria! Afinal, iogurte é feito à base de leite, que tem principalmente proteína e um açúcar diferente do amido, a lactose, que não fica azul quando entra em contato com solução de iodo. De onde, então, teria vindo o amido? Será que teria sido acrescentado para aumentar o volume do iogurte? Ou seria para conseguir uma textura melhor para o produto?
Eis uma pesquisa que poderia ser realizada, para ajudar a ampliar nosso conhecimento sobre a produção do iogurte, e que nos possibilitaria tirar uma conclusão apropriada sobre o resultado que obtivemos no teste. O que sabemos, porque foi testado depois, é que o iogurte artesanal, feito em casa, não fica azul com solução de iodo. Portanto, não tem amido.
Veja só quanta coisa interessante se descobre com base em alguns conhecimentos e práticas simples, que podem ser realizadas com materiais fáceis de serem obtidos. Basta mantermo-nos atentos, pensantes e interessados em ampliar nossos conhecimentos.
Não é que a partir de uma simples pergunta acabamos bancando Sherlock Holmes!
Figura 4 - Detetives em ação.
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Para quem quiser repetir
as experiências descritas acima
- Solução de amido
Encha com água 4 copos, do tipo americano, e verta em um recipiente que possa ir ao fogo. Misture nessa água, uma pitada de farinha de trigo e leve ao fogo até ferver. Apague o fogo e deixe a solução decantar enquanto esfria. Ela deve ficar transparente, como a água cristalina. Para os testes use apenas o líquido da porção superior dessa solução de amido.
- Solução de iodo
Num recipiente, pingue 5 ou 6 gotas de tintura de iodo (à venda em farmácias) e acrescente, aproximadamente, uma xícara das de café de água. Uma mistura de cor amarelada deverá ser obtida.
Outro produto que pode ser usado, por conter iodo, e também pode ser encontrado em farmácias, é o Lugol.
In Memoriam
Professor Oswaldo Frota-Pessoa |
Só um país, que não valoriza, de fato, educação científica, pode desconhecer obras como a do Professor Oswaldo Frota-Pessoa, voltada ao ensino de Ciências e Biologia. Só um país, que não valoriza, de fato, educação científica, pode ter grande parte de exemplares dos livros que ele escreveu ou coordenou desde a década de 1960, fora de bibliotecas escolares e de faculdades, nas quais há cursos de licenciatura em Ciências Biológicas.
Para quem se interessar pelo trabalho exemplar realizado pelo Professor Oswaldo Frota-Pessoa, sebos são opção de busca. Os conteúdos de livros antigos, além de revelarem parte da história, podem ser atuais, se atualizados forem. Não estou aqui me referindo àquelas atualizações que abusam das cores, das ilustrações, e que são, equivocadamente, consideradas muito atraentes, mas que, na verdade, estão bem aquém da capacidade imaginativa e criativa das crianças e adolescentes, para dizer o mínimo. Estou me referindo apenas à atualização de conteúdo devido aos avanços científico-tecnológicos que acontecem, atualização com a manutenção da boa qualidade dos textos, das atividades práticas e exercícios propostos, assim como manutenção da simplicidade e sobriedade das eficientes ilustrações. Forma e conteúdo não devem subestimar experiências pessoais e capacidade de pensar das crianças e adolescentes, que precisam de desafios intelectuais. Desafios que não podem ser encarados como barreiras, como dificuldades intransponíveis, mas como oportunidades para avanços, para a elaboração de novos conhecimentos.
Um convite
Você poderá conhecer um pouco da trajetória do Professor Oswaldo Frota-Pessoa, como pesquisador, professor e divulgador científico, lendo entrevistas concedidas por ele, clicando aqui, e aqui.
Bibliografia
* Paleari, L. M. Investigações práticas sobre a digestão no ensino fundamental. Ciências Biológicas e do ambiente. v. 1, n. 1, pp. 89-102. 1999.
** Frota-Pessoa, O. (Coord.). Biologia. Ministério da Educação e Cultura. 1981.
*** Frota-Pessoa, O. Biologia na Escola Secundária. Ministério da Educação e Cultura. 1962.
Se você quiser saber mais sobre outras atividades do Clube de Ciências, da EMEF "Dr. João Maria de Araújo Jr.", de Botucatu acesse os links:
- Clube de Ciências Escola municipal "Dr. João Maria de Araújo Jr." - Botucatu
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