Das Mentes Flexibilizadas
(Ponto de bifurcação),
artigo de Lucia Maria Paleari
Vivemos tempos de assombro, de arbitrariedades, de imoralidades em todos os segmentos sociais. Em cada qual, características peculiares e diferentes graus de sofisticação comportamental, mas que traduzem uma só realidade: perdemos a dignidade humana e sucumbimos à corrupção, ao individualismo, à hipocrisia. São estas ferramentas e armas do cotidiano, que fazem flamejar aviões mergulhados nos gritos desesperados de 199 vítimas conhecidas. São essas mesmas ferramentas e armas do cotidiano, que fazem flamejar o índio que repousa ao relento. São essas mesmas ferramentas e armas do cotidiano, que fazem flamejar o coração dos excluídos. O Homo demens economicus racionaliza, se justifica e segue na empreitada de investimentos contra a vida, amparado pela consciência flexibilizada que lhe garante, senão o perdão, vista grossa à falta de observância das responsabilidades, dos imprescindíveis limites e cumprimento de normas, indispensáveis à boa saúde social. Consciência flexibilizada que em lugar das penas cabíveis respalda as transgressões e insanidade, por meio de equivalente despudor e imoralidade, atitude que serve como alento nos, talvez raros, possíveis lampejos de decência e desassossego, que a solidão tem por capricho despertar. Hoje, a virtude confunde-se com o mal, e a retidão de caráter e a sinceridade, ameaçam. Exercita-se o pacto do biltre: cada um por si e todos pela derrocada humana e do planeta. As cenas se multiplicam, diversificam e traduzem sempre a mesma realidade cruel. Como cruéis, perversos, foram os rapazes desocupados e inúteis, que perambulando de carro pela madrugada à procura do nada, se depararam com uma mulher. Imagem inversa, reversa, o avesso desses covardes, até então desconhecidos, que a agrediram. Segundo um dos pais dos agressores, “crianças que fazem faculdade” e que, por isso, não deveriam sequer ficar detidas em uma delegacia. Essas “crianças”, com palavras e atitudes nada ingênuas, demonstraram ter incorporado os padrões de conduta de quem usa do dinheiro farto para garantir a impunidade. Impunidade que alimenta o tráfico de drogas, a brutal desigualdade social, o silêncio dos oprimidos, o desmatamento da Amazônia, da floresta Atlântica, do Cerrado, da Caatinga, os assassinatos dos pacifistas, os humanos abjetos, os mesquinhos sorrateiros, os ganhos ilícitos, o trabalhador usurpado, o dinheiro público mal utilizado e desviado, o professor humilhado, o aluno agressor, os rios poluídos, os políticos corruptos, as obras públicas inacabadas e superfaturadas, a prescrição de crimes, os aviões avariados voando, as pistas inacabadas operando, a indignação, desespero e lágrimas dos impotentes, a desesperança daqueles que do bem fizeram seu baluarte. Contudo, a ordem é dialogar, negociar, flexibilizar. Grau e natureza dependem dos interesses, das conveniências. Conveniências que encarecem os investimentos em artimanhas, exacerbam as incoerências, miopia e cinismo humanos, e fazem da democracia o estado de direito do indivíduo, do mais forte, do mais sagaz, jamais da coletividade, que requer partilha, solidariedade. Resta-nos saber se o Homo demens economicus já é suficientemente habilis para flexibilizar a morte, ou, simplesmente, para não sucumbir nos seus próprios dejetos. Dejetos que não reconhecem barreiras geopolíticas e precipitam mudanças globais a enfurecer oceanos, fazer desaparecer ilhas e praias, arrastar casas e Homens, plantas e bichos, de forma implacável. Gaia, ferida de morte, explode dor, impõe o caos. Escancara-nos a nossa própria finitude onto e filogenética. A insensatez humana é tão bárbara que para aumentar a área de plantio de cana em alguns metros quadrados, fazendeiros ordenam a empregados que, encobertos pelo manto escuro da noite, derrubem e enterrem as matas de galeria (matas ciliares) que deveriam proteger os mananciais. Ordenam que o olho d’água, atrevido de brotar em meio ao canavial, seja soterrado, porque não facilita a passagem de máquinas que carregam a colheita. Não bastassem imensas áreas de terrenos nobres de terra roxa tomados por cultura pouco exigente, e capaz de depauperar o solo a ponto de nem mesmo servir ao plantio do pasto, ainda nos obrigam a conviver com a poluição atmosférica, a qual agrava os quadros de doenças pulmonares, e a destruição dos microorganismos responsáveis pela ciclagem dos nutrientes do solo. Dois dos problemas gerados pelas queimadas, que acontecem durante a época seca dos anos, para conveniência dos plantadores que gastam menos com as colheitas não mecanizadas. As chaminés além de jogarem na atmosfera grumos densos de fumaça, dissipam o ar malcheiroso e ambos denigrem a paisagem, denigrem a vida. Tudo isso, sem contabilizar as mortes por exaustão de muitos cortadores de cana que, analfabetos e arrebanhados em zonas de pobreza, submetem-se a uma aviltante condição de exploração, espoliação, na tentativa de sobreviver. Serviço terceirizado, como tantos outros nesta sociedade de Pilatos. Mais uma artimanha a legitimar os ganhos, e as violências, que os empresários insistem em ignorar. Será que os incautos fazendeiros, ávidos de lucros incomensuráveis, estão à espera de que nossas células venham um dia usar etanol, ao invés da preciosa água, em suas cadeias metabólicas que geram a energia que nos mantêm vivos? Pior é que muitos fazem coro e alardeiam mundo afora as vantagens e possibilidades de crescimento econômico proporcionados por essa dita “energia limpa” dos biodiesel, com poucos opositores a contra-argumentar assertivamente. Enquanto isso, o Cerrado e o Pantanal, locais de importância vital, residência de rica flora e fauna, fontes de água, fármacos, produtos alimentícios e artesanais de inestimáveis valores culturais, sucumbem à invasão da soja. Monocultura que avança com migrantes, cujas práticas de agricultura já poluíram solo e água em suas regiões de origem, devido ao excesso de adubo e venenos químicos e colocaram por terra, graças à mecanização pesada, extensas áreas de florestas nativas, que não saciaram seus anseios de riqueza. Ganância na busca de lucros, crescentes e imediatos, que encontra nas exportações o mercado dos sonhos, a proporcionar o acúmulo de capital, a aquisição de caminhonetes de luxo, de maquinários novos para expansões da lavoura e, conseqüentemente, de mais ganhos, salvo quando a variação de câmbio torna-se desfavorável. E aí o despudor é tamanho que não hesitam em pedir subsídios governamentais ou o perdão pelas dívidas com financiamentos. Agora, com a perspectiva criada pelo biodiesel, o leite falta e atinge preços proibitivos para que chegue às bocas. O milho que alimentava o gado, as galinhas e porcos é desviado para alimentar usinas produtoras de combustíveis para mover carros poluidores do ar, que tanto encantam e escravizam os brasileiros surpreendidos com o alto preço também da carne e dos ovos. Será que a fé na ciência ainda é tanta que todos esperam, e para futuro próximo, que possamos substituir alimento por papel-moeda e água por biodiesel? Utilizamo-nos por tanto tempo da metáfora da máquina, que hoje parece líquido e certo que somos uma. Não o somos. E o que dizer de pesquisadores empreendedores encastelados nas Universidades? Será que avaliam com propriedade e profundidade o papel que deveriam exercer nessa sociedade? Ou em seus laboratórios e salas de aula também flexibilizaram e adaptaram o discurso que ameniza e justifica aceitar empresas financiadoras, irresponsabilidades, inoperância, favorecimento ilícito e assédio moral? Serão esses especialistas autoridades ou apenas técnicos a manipular moléculas, situações e pessoas, como forma de manter o pequeno poder e garantir benesses e financiamentos oportunistas, como acontece em outros segmentos sociais? Será que viagens e encontros técno-científicos patrocinados por multinacionais, digamos, bem intencionadas, também já foram flexibilizados e não mais causam repúdio e indignação? Se tamanha flexibilização tomou espaço, como sair do vício e fazer da Universidade um lugar eminentemente de ciência, de livre pensar, e não mera fonte de empregos e diplomas a garantir ascensão social e celas especiais? Ascensão social essa que tem se traduzido apenas em possibilidade de ganho, e assiduidade a centros de compras nacionais e internacionais para em consumo desmedido. Sabemos que esta condição, somada ao descontrolado crescimento populacional humano, tende a exaurir o planeta e, em um círculo vicioso, potencializar todas as cadeias de retroalimentação, que culminam em brutal e imoral diferença social. Diferença social em primeira instância, que poderá ser seguida da extinção humana, que se antevê nos apelos de uma Gaia doente, que Lovelock tão bem caracterizou em seu livro mais recente. É patente e imperativo procedermos a mudanças. Mudanças que nos elevem e nos levem a transcender as mazelas, como sugere a proposta valorosa de investirmos na educação integral do Homem, em sintonia com o antigo anseio de compreendermo-nos neste planeta e no universo, empreitada que resultou no maior empreendimento humano, a Ciência. Uma proposta educativa que preconiza o espírito científico, o conhecer especialista aprimorado para compreensões contextualizadas das questões, a aceitação e o autoconhecimento na interação com o outro, como os pilares para o renascimento humano no Homo sui transcendentalis. Um aprender para a vida e a vida inteira, em diálogo constante e profundo intra e interpessoalmente e com toda a Natureza, que sem a sinceridade, responsabilidade e comprometimento do Homem com o seu bem estar e de toda a coletividade, não proporcionará o renascimento desejável e necessário. Por isso, em dado ponto de bifurcação, o rumo a ser tomado pelo sistema certamente não nos favorecerá como espécie, se insistirmos na cegueira de conveniências sociais individualistas, amparadas na hipocrisia das mentes flexibilizadas. |